
Na política brasileira — uma verdadeira montanha-russa — tudo pode acontecer: quem esteve preso por chefiar esquema de compra de apoio parlamentar agora vira paladino contra o que chama de “corrupção da democracia”. O ex-ministro petista José Dirceu, condenado no caso do mensalão, compartilhou em suas redes sociais um vídeo de uma palestra em Franca (SP) na qual ele denuncia o financiamento eleitoral como “poder que corrompe o processo”.
“Estamos vivendo um verdadeiro escândalo na nossa democracia. O financiamento das campanhas eleitorais se tornou um poder que corrompe o processo eleitoral. Imagine: R$ 52 bilhões destinados a deputados, com alguns deles recebendo até R$ 600 milhões em apenas 4 anos…”, afirmou Dirceu no vídeo.
Na gravação, que intercala imagens do dirigente petista sendo ovacionado em um auditório, ele prossegue:
“Isso é um verdadeiro escândalo que está acontecendo, nessas emendas impositivas. É uma coisa, porque, na verdade, você dá para cada deputado o dinheiro para ele fazer campanha, né? Virou o poder eleitoral. É a corrupção da eleição, da democracia. É isso. 52 milhões [de reais] para os deputados. Tem deputado que tem 600 milhões [de reais] em 4 anos para distribuir.”
A contradição é evidente e renderá debates: condenado por corrupção e agora acusando o sistema de corrupção estrutural. Independentemente da carga moral desse discurso, o momento expõe como figuras outrora integradas aos esquemas se reinventam em opositores do mesmo esquema. A ironia da política — ou talvez a hipocrisia — fica estampada no microfone de Dirceu.
Vai voltar?
“Agora, me contou um historiador que, nos Estados Unidos, teve um período que isso existiu, [se] chamava ‘repartir o barril de carne de porco’. O nome que o povo deu, americano para essa coisa de dar dinheiro para os deputado fazer emenda era repartir o barril de carne de porco. Você vê que é um nome totalmente pejorativo, entendeu? É o que nós estamos assistindo no Brasil, um verdadeiro escândalo. Por isso que o Supremo Tribunal Federal está tomando medidas e essa questão de renovar a Câmara dos Deputados, de dar um grito no país, para o país renovar, é a coisa talvez mais importante que nós temos”, disse Dirceu, que foi condenado pelo mesmo STF que cita.
O petista ensaia com essas palestras e entrevistas seu retorno à política, e a menção a “renovar a Câmara dos Deputados” não é gratuita. O ex-ministro de 79 anos já disse que, “por justiça”, merece “voltar à Câmara”, e confirmou sua candidatura com apoio de Lula.
Mensalão
Segundo a ementa oficial do acórdão da Ação Penal 470, “o chamado ‘mensalão’ consistiu no pagamento de vantagens indevidas a parlamentares, a título de propina, para que votassem conforme os interesses do governo federal, em um esquema que envolveu o desvio de recursos públicos de órgãos estatais (Banco do Brasil/Visanet) e a utilização de empresas de publicidade de Marcos Valério como instrumento de lavagem”.
O documento diz ainda que “recursos públicos foram desviados do Banco do Brasil, por meio de contratos de publicidade com as empresas DNA e SMP&B, de Marcos Valério, e adiantamentos indevidos da Visanet, totalizando cerca de R$ 73,9 milhões, parte dos quais destinada ao pagamento de propinas”.
“José Dirceu chefiava a organização criminosa, com poder de decisão sobre a distribuição dos recursos ilícitos e articulação com os líderes partidários”, registra o acórdão.
Dirceu foi condenado a 10 anos e 10 meses de prisão por corrupção ativa e formação de quadrilha.
Na perspectiva do relator do caso, o hoje ministro aposentado Joaquim Barbosa, “a democracia brasileira foi sequestrada por um esquema criminoso que transformou o Congresso Nacional em balcão de negócios” e “o mensalão não foi apenas corrupção: foi um golpe contra o regime democrático”.
Mas pode chamar de “corrupção da democracia”.
