
Na ânsia de dar um ar professoral e literário ao seu voto no julgamento de Jair Bolsonaro, a ministra Cármen Lúcia tropeçou feio em sua própria narrativa. Buscando se amparar na autoridade moral e intelectual de Victor Hugo, autor do célebre História de um Crime, acabou caindo em contradições e, sem perceber, descreveu com perfeição o próprio Supremo Tribunal Federal (STF).
Logo de início, cometeu uma blasfêmia ao distorcer o título da obra, dizendo que “o crime é o golpe de Estado”. Não é isso que o livro diz, e a tentativa de encaixar o conceito em sua fala revelou apenas uma sede de espetáculo.
Além disso, ao tentar contextualizar o período histórico (1851 a 1870), escorregou até nos cálculos, citando “170 anos” quando, na verdade, o intervalo não corresponde ao número mencionado. Um detalhe? Talvez. Mas em um voto que pretendia ser erudito, soa como falta de rigor.
O ponto central, porém, é mais revelador. Ao citar o diálogo entre personagens da obra, a ministra trouxe uma descrição que caberia como uma luva na conduta do STF: “Nós que condenamos a usurpação, seríamos os usurpadores. Nós que somos defensores da Constituição, afrontaríamos a Constituição.
Nós, os homens da lei, violaríamos a lei”. Basta trocar os nomes: Alexandre de Moraes como o personagem que propõe o “bem maior” via golpe, e Luiz Fux, único juiz de carreira da Corte, como o interlocutor que rebate, afirmando que “o mal, feito para o bem, continua sendo o mal”.
Na prática, Cármen Lúcia tentou usar Victor Hugo para dar verniz intelectual a uma condenação sem provas robustas. Mas, ironicamente, acabou descrevendo o que o próprio Supremo tem feito: usurpar competências, afrontar a Constituição e usar o poder absoluto sob a justificativa de um ‘bem maior’. O que a ministra chamou de “lição histórica” acabou sendo um retrato fiel da atual realidade da Justiça brasileira.
Mais uma vez, o STF deixa claro que não age como tribunal imparcial, mas como protagonista de uma narrativa política. E, ao tentar mostrar erudição, Cármen Lúcia escancarou a contradição. Foi mal nessa, ministra: caiu na própria armadilha.